Fluidos Visco-Elásticos

Como este é meu primeiro post aqui no blog, vou começar com uma breve introdução sobre minha pessoa, falar do que fiz em minha graduação e mestrado, para depois apresentar-lhes o ponto principal do post que é comentar sobre fluidos viscoelásticos e o solver viscoelasticFluidFoam.

Meu nome é Jovani, sou formado em Engenharia de Bioprocessos e Biotecnologia pela Universidade Estadual do Rio Grande do Sul (UERGS), mestre em Engenharia Química pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e atualmente faço doutorado em Engenharia Química na Universidade Federal do Rio de Janeiro (COPPE/UFRJ).

Comecei a trabalhar na área de fluidodinâmica computacional (CFD) durante minha graduação, numa iniciação científica. Na ocasião, desenvolvi um código CFD para simular dispersão de poluentes em solos. A experiência foi muito interessente, pois tive que desenvolver um código CFD do zero, ou seja, criar geometria, malha, aplicar discretização usando volumes finitos (FVM), implementar meus próprios esquemas de interpolação, resolver o sistema algébrico-diferencial de equações resultantes da discretização espacial, além de programar muito.

Lembro-me de ter implementado diferenças centrais (CD) e ainda enquanto estava resolvendo somente difusão tudo estava perfeito, mas bastou colocar o termo advectivo para surgirem as famosas oscilações na solução e obrigar a buscar outro esquema de interpolação. O que está implementado atualmente é o esquema WUDS. Este esquema usa um medidor difusão/advecção para poder dosar entre CD/upwind. O código foi desenvolvido inicialmente em Linux para execução em console. Posteriormente, trabalhei no desenvolvimento de uma interface gráfica em Linux, usando Qt, e também numa versão Windows para o software. Agora já faz algum tempo que o código está parado.

A versão Windows do software está disponível para download neste link e tem implementado a solução de difusão, advecção, sorção e geração/degradação (para processos de (bio)remediação) em todo o domínio ou localizada. Esta versão foi compilada em Windows XP, mas roda tranquilamente no Vista e no 7, assim como em máquinas virtuais no Linux (e no emulador Wine ele executa sem problemas também). Existe até um paper publicado na revista Eng. sanit. ambient. com algumas informações sobre a modelagem usada. O software pode ser usado para simular problemas simples (devido a limitação de geometria que pode ser usada) de transferência de calor e massa.

Durante o mestrado continuei trabalhando com CFD e, diga-se de passagem, em uma área um pouco mais complexa. O objeto de estudo foi a área de fluidos viscoelásticos, a qual vou-lhes introduzir nos parágrafos posteriores.

Quando se fala em Mecânica dos Fluidos, a maioria pensa automaticamente em escoamentos de fluidos de características newtonianas, de que os exemplos mais comuns são o ar e a água. Apesar da grande aplicação dos fluidos newtonianos, a maioria dos fluidos sintéticos industriais (indústria de polímeros principalmente a de terceira geração a qual promove a transformação dos materiais poliméricos em produtos finais), inúmeros fluidos de relevância biológica, entre outros, apresentam características claramente não newtonianas:

  • A geologia tem demonstrado que o movimento do gelo glacial, o escoamento de lava dos vulcões e a sua posterior solidificação são fenômenos só corretamente descritos, quando se assumem modelos de comportamento reológico não newtoniano.

  • O sangue é um fluido de constituição físico-química complexa, formado por moléculas de grandes dimensões e elevado peso molecular em solução num fluido de baixo peso molecular e estruturalmente simples. Estes são os ingredientes para um fluido com características viscoelásticas. A saliva e o fluido sinovial, que lubrifica as juntas ósseas, apresentam um elevado grau de elasticidade extensional.

  • Fluidos diversos como as tintas decorativas, as tintas de impressão, as colas, os produtos de cosmética e beleza, os medicamentos, os produtos alimentares no estado líquido (ketchup, iogurtes, molhos), inúmeros produtos alimentares que, apresentando-se aos consumidores no estado sólido ou em pó, passaram em processo por uma fase líquida (sorvetes, produtos de confeitaria, massa de panificação), os sabões e detergentes, alguns óleos com aditivos de massa molecular elevada ou contendo partículas no estado sólido, fluidos lubrificantes utilizados na perfuração de poços de petróleo e gás natural, petróleo bruto, plásticos no estado líquido (polímero fundido), alguns fluidos térmicos, lamas de estações de tratamento de águas residuais, todo o tipo de lamas provenientes da indústria extractiva, fluidos abrasivos, etc. De fato, a lista de fluidos não newtonianos é muito extensa do que uma lista de fluidos com características newtonianas.

Mas o que é realmente um fluido com reologia viscoelástica?? Pode ser definido simplificadamente como sendo um fluido que se comporta como viscoso e elástico ao mesmo tempo. Um material elástico ideal, sob uma tensão, responde com deformação reversível. Ao cessar a tensão o corpo retorna à sua forma e volume original. Já um material viscoso, quando sob uma tensão de cisalhamento, responde de forma irreversível as deformações sofridas. O fluido viscoso dissipa energia. Fluido viscoelástico faz um pouco de cada coisa, ou seja, dissipa um pouco e armazena o restante. O que vai dizer o quando vai ser dissipado ou armazenado são as próprias características do fluido. O tempo de relaxação, por exemplo, é uma dessa características.

As figuras que seguem ilustram fenômenos tipicos de fluidos viscoelásticos:

  • Inchamento de extrudado (die swell). Fluido Newtoniano na esquerda e fluido viscoelástico na direita (Fonte: Bird et al., 1987):


  • Experimento rod-climbing. Fluido Newtoniano na esquerda e fluido viscoelástico na direita (Fonte: Bird et al., 1987):

Outra questão interessante é que todos os fluidos demostram um pouco deste comportamento. Por exemplo, o vidro usado em janelas se apresenta no estado sólido, mas com o passar do tempo, em construções mais antigas, se percebe que a parte inferior da lâmina de vidro é mais espessa que a superior, ou seja, o vidro escoou, o tempo de relaxação do vidro foi superado e devido a gravidade escoou e se acumulou na extremidade inferior. Este é um caso onde o tempo de relaxação é grande. Se pegarmos uma chapa de aço esse tempo é tão grande que não percebemos mudanças. Por outro lado, estamos cercados de fluidos com tempo de relaxação muito pequeno, a água (típico fluido newtoniano) é um desses casos. Se pularmos na água de uma altura muito grande, ou seja, fazermos com que o tempo de relaxação da água seja maior do que o tempo de ação de nossa força nela, vamos ter a sensação de colidir com algo sólido. Por isso que não se pode pular na água de lugares muito altos, pois literalmente, o que aconteceria, era se esborrachar. No youtube se encontram vários vídeos onde as pessoas andam sobre uma piscina contendo fluido não-newtoniano.

Em condições normais de pressão e temperatura o ar encontra-se muito concentrado e tem um tempo de relaxação de fenômenos elásticos da ordem dos 10e-13 s. Como a maioria dos fenômenos que observamos na biosfera terrestre tem tempos característicos significativamente superiores, o ar encontra-se em equilíbrio e as suas propriedades reológicas podem assim ser consideradas como newtonianas. Contudo, se um gás se encontrar rarefeito, e até no estado de plasma, os fenômenos de dinâmica gasosa terão tempos característicos da mesma ordem de grandeza dos tempos de relaxação e colisão inter-molecular, não sendo neste caso já possível considerar essa matéria como tendo propriedades newtonianas, nem válida a hipótese do meio-contínuo (vejam neste post do Mitre). Ora, a matéria nesse estado rarefeito, dito de plasma, constitui a quase totalidade da matéria do universo.

Depois dessa introdução aos fluidos viscoelásticos cabe falar um pouco do tratamento usando CFD. Não vou me estender no equacionamento. Uma visão simplista mostra que a diferença em relação aos fluidos newtonianos é a necessidade de uma equação constitutiva mais sofisticada para o tensor tensão. As equações constitutivas encontradas são do tipo diferencial ou integral e, diga-se de passagem, um tanto complexas. Na minha dissertação de mestrado, disponível nesse link, tem muita coisa a respeito da modelagem e tratamento CFD para resolver este tipo de fluido.

O trabalho sobre fluidos viscoelásticos surgiu pela necessidade da industria de processamento de polímeros, que trabalha com fluidos viscoelásticos em processos de moldagem, injeção, extrusão, etc. Assim, o enfoque principal foi para esta aplicação. A industria de processamento de polímeros conta hoje com bons softwares para simular os processos descritos anteriormente, contudo com um porém, a maioria dos softwares simulam somente fluidos não-newtonianos e não propriamente fluidos viscoelásticos. Isto, principalmente devido a complexidade da simulação dos fluidos viscoelásticos e as vezes por falta de conhecimento do pessoal da industria. O software Moldflow é um dos mais conhecidos na industria de polímero. Simula fluido não newtoniano, do tipo power-law, Bird-Carreau, ..., e sua licença é caríssima. O software Polyflow, da Ansys, é um dos poucos que trata fluidos viscoelásticos. O problema é o valor da compra e manutenção da licença.

Tendo conhecimento do software OpenFOAM (OF), livre e de código aberto, optou-se por criar o solver para tratar escoamentos com fluidos viscoelásticos nesse software. Uma vez feito isso teríamos em mãos um solver mais genérico e com aplicações em problemas variados, sem limitações de geometrias e malhas, possibilidade de usar várias ferramentas sofisticadas de CFD, processamento paralelo, técnicas multigrid, enfim, usar tudo o que o OF tem a oferecer e de forma gratuita.

O solver criado foi batizado com o nome viscoelasticFluidFoam é está disponível, já faz algum tempo, na versão OpenFOAM extended ou dev (OF-dev). O solver é usado como qualquer outro existente no OF e para facilitar o uso tem alguns exemplos no tutorial do software. A quantidade de modelos implementada é vasta, ou melhor, todos aqueles que encontrei enquanto fazia a revisão bibliográfica para minha dissertação de mestrado. O solver vem sendo usado por muita gente, principalmente pessoas de fora do brasil. Como já comentado, está disponível na versão OF-dev que pode ser conseguida usando o seguinte:

svn checkout http://openfoam-extend.svn.sourceforge.net/svnroot/openfoam-extend/trunk/Core/OpenFOAM-1.5-dev/ OpenFOAM-1.5-dev/

Sugere-se a leitura desse post, do Luiz Fernando, que dá maiores informações sobre este assunto. Para usuários de sistema operacional Ubuntu 10.04 tem uma maneira muito fácil de ter o OF-dev operacional (créditos ao CAE-Team), basta executar 3 comandos:

  1. sudo add-apt-repository ppa:cae-team/ppa

  2. sudo apt-get update

  3. sudo apt-get install openfoam-dev-1.5

e carregar as variáveis de ambiente do mesmo com:

source /usr/lib/OpenFOAM-1.5-dev/etc/bashrc

no terminal em que o OF-dev será executado.

Pode-se também compilar o solver na versão OpenCFD do OF. No fórum do cfdonline tem um post que comento a respeito disso, vejam aqui.

O código do solver também pode ser visualizado diretamente do repositório (viscoelasticFluidFoam). As equações constitutivas para fluidos viscoelásticos, por sua vez, estão em uma biblioteca a parte (viscoelastic). Alguns utilitários para pós-processamento também foram criados (utilities).

Bom, quem sabe um dia, posso voltar a falar mais a respeito do solver viscoelasticFluidFoam.

Comments

  1. jovani,

    primeiramente, seja bem vindo :)

    segundo, parabéns pela dissertação: não apenas(!) por te propores a resolver um problema complicado, mas (pessoalmente) por apresentares informações valiosas a respeito dos meandros na programação no openfoam; não é fácil encontrar material desse nível ;)

    a título de curiosidade: como o código-fonte estava/está disponível na versão 1.5-dev, o que faltou para ele ser incluido de fato na 1.6 ou 1.7?

    abraço!

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  2. Olá,

    Respondendo sua pergunta: Não teria como estar no OF 1.6 ou 1.7, pois nunca tive contato com o pessoal da OpenCFD que vem desenvolvendo estas versões. Vou-lhe ser sincero, fico indiferente a questão do solver estar ou não na versão OF.

    Já a versão OF-dev é mantida pelo Prof. Hrvoje, o qual foi meu co-orientador durante o mestrado, e nada mais justo que mandar para ele fazer o release (mandei logo que fechei o código e acabei meu mestrado).

    Eu, particularmente, continuarei usando e contribuindo com a versao dev. Mas sempre levo lado a lado com a versão padrão. Por exemplo, já estou com a 1.7 instalada. Gostei do .deb que eles disponibilizaram mas optei por pegar e compilar o source. Não testei a compilação do solver nesta versão ainda, mas testarei se algum usuário tiver problemas, foi assim na versão 1.6 também.

    Espero ter esclarecido.

    Um abraço,
    Jovani

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  3. ah, legal; eu não sabia que existe essa distinção no desenvolvimento do OF -- achei que as versões .x e -dev fossem a mesma... (heh, vou fuçar nessa última, deve ter outras coisas interessantes :)

    abraço!

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